sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Whitmaniando

.

O sinal ecoa no salão, cavalheiros correm em busca de parceiras, dançarinos inclinam-se uns para os outros

O jovem está acordado e deitado sob o telhado de cedro do sotão ouvindo a música da chuva


O crítico analisa a galeria de arte de olhos semi-cerrados e cabeça inclinada


A tripulação do pesqueiro empilha camadas repetidas de linguado no porão


e assim segue...



(Song of myself)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Sobre a Fronteira

Estarei eu sereno algum dia,

se escuto e contemplo deus

em cada objeto ou amante

se vejo assinado seu nome

até nos lençóis e maçanetas?

Inútil tentar me assustar

por dez mil vezes morri

e aqui estou de volta inteiro

berrando numa gota de tempo

como as floresta secas da taiga

O que o jovem pode fazer

para tornar-se um herói e dizer

a toda humanidade que a cada

hora, em cada momento e nos

outros todos que já vão chegar

os deuses são como cartas dos homens

que inclinados frente às portas delicadas

entendem que nenhum dia melhor que esse

para entender quase nada, entender como

pode haver Whitman, entender talvez como

pode alguém falar por mim, décadas remotas

Se tenho coesão, projeto, método

se tenho amigos, jantares, se durmo

cedo, se estou te ouvindo agora

só mais um minuto; minha amiga

espere que estou a milhas próximas

Em algum lugar eu paro e espero por você

em algum lugar eu paro e espero

não me cruzando na primeira vez não desista

não me vendo num lugar procure em outro

Em algum lugar eu paro e espero você.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Receitas Romenas


Pegue um jornal.
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo do tamanho que voce deseja dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.
O poema se parecerá com você.
E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Mamihlapinatapai (a veces escrita incorrectamente como mamihlapinatapei) es una palabra del idioma de los indios yámanas de Tierra del Fuego, listada en el Libro Guinness de los Récords como la "palabra más sucinta del mundo", y es considerada como uno de los términos más difíciles para traducir. Describe "una mirada entre dos personas, cada una de las cuales espera que la otra comience una acción que ambos desean pero que ninguno se anima a iniciar".

do que tudo aponta, estimado amigo
essa guerra é toda um fardo nosso
e respeito assim o terror vosso
consciente eterno do perigo

Não importa os que dizem que tu tarda
daqui escuto as bombas e sinto seu veneno
e a fé em sua força é o ânimo que armazeno

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Apresentando Joaquim


Nômade, meu teatro dos caminhos,

círculo em vaivém desde a caminhada,

bois de carro não trafegam nestas festas

e é assim, de fábulas, minha única jornada



Poesia de Sistemas


1- SISTEMAS PARA ORGANIZAR FÁBRICAS

Podemos criar um sistema para fazer

Aviões; precisamos juntar o aço

E juntar também, dos aviões, os projetos...

E mais as ferramentas com que se trabalha

O aço ligado para os aviões

É preciso traçar e compor esses valores

Em combinações com os meios de fabricação,

cada vez mais fácil e mais rápido

por meio de processos e formas temporais

é preciso valer de atividades no tempo que passa


2 – SISTEMA PARA FABRICAÇÃO DE AUTOMÓVEIS

Necessitamos fabricar os automóveis;

A fundição de aço, lâminas de aço,

O estudo dos motores que movem os automóveis.

É preciso vidro, instrumentos.

Tudo se acerta também em relação ao tempo,

E se vai experimentado a medida que

Se vai montando as peças.

O sistema usual é pra conseguir

Colocar no comércio essa máquinas

Sem nenhum prejuízo.

E conseguirmos todos fabricados a tempo.


Joaquim Cardozo (1897-1978)
Poeta, dramaturgo, engenheiro calculista. Nasceu no Recife em 26 de agosto de 1897 Grande estudioso e conhecedor da matemática, em cujo domínio penetrou com grande sensibilidade poética, inovou os métodos tradicionais do cálculo estrutural. Viabilizou, assim, a execução de obras complexas da arquitetura moderna, como as de Oscar Niemeyer. Calculou, para o arquiteto, as obras do Conjunto Pampulha, em Minas e, em Brasília, o Palácio da Alvorada, a Catedral, a cúpula do Congresso Nacional e o Itamarati, entre outras.

http://www.joaquimcardozo.com/




segunda-feira, 26 de novembro de 2007

São Petesburgo



Porque tudo é farsa

Embuste, trapaça

Simplesmente uma grande confusão


Não se sabe quem

E nem o quê, mas,

Apesar de toda essa ignorância

E de todos os embustes

Continua-se a sofrer

e, quanto menos se sabe


tanto maior é o sofrimento!




Genealogia Revisited


Eram de eterno azul e cinza as formações de esquadra que atravessaram a história humana em silêncio?

Equilibram-se através dos séculos nas arquibancadas de rocha pura as canções de fundo oceânico?

Nuvens químicas voam em bandos sobre os portos tal como mil tambores rufando sobre pontes e baleias?

As aves singram os céus com heroísmo natural mesmo quando passam por ciclones ou chegam às manhãs sem ilhas?

A bordo do navio, contornando o Horn, eram fogueiras nas ilhotas?


A indolência da gaivota que atravessa os céus não é a mesma de um recife no canal que tangencia o rio?

Se cada pedra fosse uma pátria sombria de umidade e relva seria cada ilha um exílio de ossos dispersos?

Observando corsários, escutando alto-falantes, estão vestidos de tempos murchos os rochedos?

Nos sabemos prisioneiros da árida planície que é o tempo nessas terras de pesca e nuvens negras?

Quando ruflarem torres emborcadas nas horas de luz violeta e cisternas vazias, parecerá tudo um ar de estalos?




domingo, 25 de novembro de 2007

Os emigrados



O que os persas tentaram

Os árabes tentaram

Os turcos tentaram


Só os imigrantes puderam


sábado, 24 de novembro de 2007


As ambiciosas cinzas do cigarro

Mantêm sua integridade de sucata:

Basta uma breve erupção dos dedos

Ou um arfar dos ventos sem caráter



E veja só:


tudo

aquilo

cede

como

tal

.

Agora

soltas

condenadas

a


espalhar-se

sem

mais

como


voltar

aos
ninhos


frágeis

do

Maço

de


liquens

e


polens


de




onde





tudo






surge

.



.

.



Genealogia das aves migratórias


Monarquias do eterno céu azul e cinza,
à vós que como formações de esquadra
atravessaram a história humana em silêncio
dedico essas linhas que vos seguem


A caminho das Molucas o oficial imaginava escrever uma genealogia das aves migratórias, uma espécie de canção sobre o fundo incerto e oceânico das raças, uma grandiosa narração das dinastias ignotas a equilibrar-se através dos séculos nas arquibancadas de rocha pura sobre as enseadas.

Como nuvens químicas a voar em bando sobre os portos, a trocar sinais tal como mil tambores rufando sobre pontes e baleias, singrando os céus com heroísmo natural, mesmo quando passam por ciclones, ou chegam às manhãs sem ilhas, naus perdidas no Pacífico, à bordo do navio, contornando o Horn.

(Fogueiras acesas nas ilhotas)

Uma solitária gaivota atravessa os céus com a indolência absurda de um recife no canal que tangencia o rio; cada pedra uma pátria sombria de umidade e relva; cada ilha um novo exílio seco de ossos dispersos; cada recife um descanso estreito de água-furtada; mas um ritmo de governo, a respiração em uníssono, os mesmos pensamentos sem palavras, a íntima linguagem que nenhum vento pode irritar,

como anjos em pluma sobre montanhas de cristal e gelo, além das cidades que se levantam por trás das cordilheiras rubras, sobrevoando corsários ao largo nas Canárias, escutando alto-falantes nas ruínas em Colônia, descansando sobre prisioneiros mortos nos cordames dos Sargaços, vestidos de tempos murchos os rochedos, ruflando asas de torres emborcadas, nas horas de luz violeta e cisternas de cabeça para baixo quando tudo pareceria um ar de estalos

(Nos sabemos prisioneiros da árida planície que é o tempo posto em ordem, mas o que estará em ordem nessas terras de pesca e nuvens negras?)

Com tais fragmentos, por uma noite, o oficial a caminho das Molucas pôde escorar suas ruínas e descansar. Pois então também vos conforto. O oficial mais uma vez enlouqueceu nas Ilhas. Deixou apenas umas poucas palavras escritas em que dizia assim:


Datta. Dayadhvam. Damyata.

Datta. Dayadhvam. Damyata.

Datta. Dayadhvam. Damyata.


Shantih shantih shantih

.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Para a Realidade


Chora real!

Chora que nas letras estás morto!

Chora que esses versos são teus algozes!

Chora que és inatingível e não te reconheces!


Chora que nas filosofias estás pálido!

que não há tempo espaço ou dimensão!

que jamais serás reconhecido ao caminhar nas ruas!


Chora real!

Chora que és filho único de mãe desconhecida!

Chora que és um órfão abandonado pelas teologias!

Chora que não tens família, amigos e estás perdido nos escuros!


Chora que tudo que há de ti é pura representação barata!

que nem os laboratórios podem provar sua existência!

que teus gritos estão surdos para todos nós nos mundos!



Lavoura



Trago na palavra palavras

Todas as palavras deste mundo



quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Sem Isqueiro



(O fósforo da casa acabou:

toda vez que quero fumar

tenho de viajar ao fogão


e quando volto


é sempre a mesma neurose:

-- Fumar o cigarro compulsivo

Antes que ele se apague outra vez)





sexta-feira, 9 de novembro de 2007

I

A fumaça no sertão

Fala como morte nos rios

sertanejos

Fala como os rios de um dia

reinos do amarelo

O sol em Pernambuco urbanizado

Murilo Mendes segue os rios

Ouvindo em disco Mariane Moore

A falar sério com as coisas

II

Museu de tudo

Esse habitar no tempo

Rios sem discurso, ele diria

O museu de Pernambuco na baixa Andaluzia

No bar sem um meio de transporte

Resolve então jantar com os desembargadores

O Sol no Senegal lembra as águas do Recife

E mesmo sem a luz isso não se explicaria

III

Doença do mundo físico

Número quatro da escola de Ulm

Pergunte a Joaquim Cardozo

Sobre a fábula de Alberti

Sobre romances de barbante

Sobre o níquel, o alumínio e o estanho

Diante da folha branca

Debruçado sobre os cadernos

Leio o ultimo poema de Elizabeth Bishop


terça-feira, 6 de novembro de 2007

Abreu e Lima



"Ao capitão Abreu e Lima
concederam estranha honra:
ele foi convidado a ver
fuzilar o pai, Padre Roma

O capitão Abreu e Lima
ante a distinção concedida
se foi de quem a concedeu:
o rei e o vice da Bahia.

Se foi para a Venezuela,
vestir a farda de Bolívar:
não era a sua, mas pregava
um independência com vida."


Homenagem de João Cabral de Melo Neto ao mais fascinante personagem da História Brasileira.


Sem Isqueiro


(O fósforo da casa acabou:

toda vez que quero fumar

tenho de viajar ao fogão


e quando volto


é sempre a mesma neurose:

-- Fumar o cigarro compulsivo

Antes que ele se apague outra vez)




segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Potomac River


No ataque sulista ao Fort Sumter, O exército da União era composto de apenas aproximadamente 11 mil soldados.

O exército da Confederação era ainda menor, por volta de seis mil soldados.

No final da guerra, o exército da União tinha cerca de 1,12 milhão de soldados.

O exército da Confederação atingiu seu máximo em 1863, quando chegou a quase 500 mil o número de soldados

As roupas eram precárias, feitas de crua, não processada, costumavam desfacelar-se na primeira chuva.

Muitos soldados também não recebiam calçados

Na Confederação a maioria dos soldados lutou descalça.

A maioria dos soldados usava rifles capazes de atirar apenas um tiro por vez, permitindo o acerto de alvos localizados a até 375 metros de distância.

Em muitas batalhas, os soldados caminhavam uns próximos aos outros, em formação, tornando-os um alvo fácil para os canhões inimigos.

Para cada soldado que morto em batalha morriam dois por causa de doenças como cólera, disenteria, febre tifóide, malária e tuberculose.


Aproximadamente dez mil confrontos militares ocorreram durante a guerra



Através de um bloqueio naval e do controle do Rio Mississippi e do Rio Tennessee, a Confederação foi cercada e dividida completamente.

Em 1861, a Marinha da União tinha cerca de nove mil marinheiros, 90 navios (42 em comissão) e um orçamento anual de 12 milhões de dólares. No final da guerra, esta Marinha tinha 56 mil marinheiros, 626 navios, dos quais 65 eram encouraçados, e um orçamento anual de 123 milhões de dólares.


Nenhum país reconheceu a independência da Confederação, com exceção do reino alemão de Saxe-Coburg-Gotha.


Em setembro, Rosecrans e seus 55 mil soldados atacaram Chattanooga, e Bragg foi forçado a recuar

Em maio de 1864, Sheridan, comandante de uma tropa de 100 mil soldados, por ordens de Grant, invadiu e conquistou grande parte do sudeste da Confederação.

Sheridan conquistou Atlanta ainda em maio, tendo enfrentado resistência de uma força confederada de aproximadamente 60 mil soldados soldados.

Sabendo que um ataque frontal e direto contra Richmond seria desastroso, Grant moveu suas forças em direção ao sul, ao sul do Rio James, para atacar Petersburg, um pólo ferroviário que abastecia Richmond com suprimentos.

Ao invés de um ataque direto, Grant preferiu cercar Petersburg e lentamente estagná-la com a falta de suprimentos. Assim sendo, cavou enormes trincheiras em torno da cidade.

Por um ano Petersburg ficou cercada, até que nos primeiros dias de abril de 1865, quando as instalações ferroviárias da cidade foram finalmente capturadas pelas forças de Grant.

Lee foi forçado então a fugir da cidade, e forças nortistas capturaram Richmond em 10 de abril.

A Guerra Civil Americana foi a primeira guerra onde balões foram utilizados com o propósito de patrulhamento aéreo.


quinta-feira, 1 de novembro de 2007

.

Essa ponte leva aos invernos químicos

Imensa narrativa inconsciente o raciocínio

Às avessas como máquina infernal sinfônica

Vou ao que provoca e alivia como Baudelaire:


O Navio a Vapor


Essa ponte leva aos invernos químicos

(Imensa narrativa inconsciente o raciocínio)

Às avessas como máquina invernal sinfônica

vou ao que provoca e alivia como Baudelaire:


O vapor de fumo escuro

atraca raso na maré

Dribla os vapores vazios rio adentro

E escorre os meandros sujos do Jacaré


O vapor desliza entre esses portos

Na Babilônia a deriva, escondido pelo Rio

Entre as pedras, fumando a ciência divina


exploram fazendas, afogam formigas

Atravessam estradas, inauguram agonias

Devoram oceanos mais velhos que os céus


quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A execução do diplomata


Bravos soldados na fronteira guardam postos
com barcos, armas, munições e equipamentos
subordinados a torres, coletores de impostos
vivem desprotegidos dos céus e dos tormentos

não existem tártaros que não imaginem o mundo
incendiado, tornado todo uma pastagem
que não sonhem com qualquer palácio inundo
qualquer recuo, a tensa execução selvagem

retornando sem ter afastado os intrusos,
não morreram nos baixios ou mistérios
abandonando aldeias aos canhões sem uso

não trouxeram paz à China ou ao império
bombardeados ao executar os diplomatas lusos
não inundam mais seus cofres com minérios



Poesia Ártica

.
*

Esses versos são a ponta do iceberg:


O resto do poema fica sob a lâmina d'água
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terça-feira, 30 de outubro de 2007

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Chansong II


"I’ve never been in Paris for the summer

I’ve never drank a Scotch with this bouquet"


Nunca vendi cavalos nas feiras da Tartária

Ou me perdi nas formalidades dos mestrados

Nunca fundei dinastias sobre reis assassinados

Ou joguei comediantes bestas sobre as feras


Jamais encontrei Buda no menu dos restaurantes

Tampouco acendi lâmpadas na guerra da Coréia

Jamais corri assustado alvejado por manifestantes

Tampouco li Gilgamesh na língua da Caldéia


Não produzi chacinas ou dividi famílias e alianças

nem dirigi carros de embaixada com insígnias de estado

não enriqueci com poços de petróleo no Arkansas


nem engordei bezerros nas planícies do el dorado

Não fui cantora de bar ou empregada de alguns mouros

Apenas escrevo sonetos antes de entrar na arena dos touros



terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um pouco mais sobre Carleto Gaspar*


Carleto Gaspar tinha como programa de governo algo próximo do ideal ortodoxo do Romantismo Alemão, um projeto ideológico que, para ele, só poderia ser alcançado através de um conceito particular denominado Baianismo-Beat-Dionisíaco. Se esse “método” incluía guerras, violências, saques e orgias, isso nunca foi esclarecido, Carleto só ressalta a errância como conceito fundamental de sua ideologia e ideário: a idéia do homem dividido biologicamente entre o homo sedentarius e o homo nomadis. Seu sonho era uma nação de homens nômades, assentados sobre a produtividade material do homo sedentarius limitado e pouco criativo que seria subjugado e escravizado. A luta de Classes carletista seria uma eterna luta dos sedentários infelizes e desencantados lutando para prender os nômades à sua vida medíocre e previsível.

Carleto idealizara uma sociedade em permanente migração, composta ciclicamente por levas de refugiados e assentados que se revezariam aleatoriamente da maneira que lhes parecesse mais agradável. Um nomadismo industrial com ênfase na produção idílico-poética e que reconheceria também a importância do Nômade Sedentário como peça fundamental da engrenagem social carletista, aquele nômade que decide ficar indefinidamente em um determinado assentamento.

Esses assentamentos seriam centros de lazer urbano-campestre, destinados a busca da alegria e da realização da vontade em absoluta integração com a paisagem. Segundo seu biógrafo particular, José Inácio de Abreu e Lima, Carleto Gaspar já delirava com as paisagens agrestes da Bahia no terceiro ano de guerra, dizendo que aquilo era tudo só podia ser obra de um deus da lírica persa. Parava às vezes no meio do campo de batalha para meditar sobre os binômios compostos que levam ao orgasmo ou sobre a estrutura narrativa do velho testamento. Só as tempestades de balas e flechas o tiravam de seus devaneios; mas uma vez desperto, ele outra vez surgia como um titã a esbravejar, dar tiros sem direção e a exaltar furioso o vultuoso saque que aguardava os soldados dentro dos muros. “Glória eterna ao primeiro que galgar as fortificações” e seguia em frente atirando imprudente em meio aos projéteis que zumbiam sob seus ouvidos.




Aquela noite de natal de 1807 foi uma noite triste para os poucos soldados que ainda sustentavam o cerco a Ilhéus. As malas de provisões se esvaziavam, o fosso largo impedia o assalto frontal aos muros e os carros de boi exaustos, sem ração, enfraqueciam a combalida linha de suprimentos.

Em seu gabinete improvisado com panos e lonas vermelhas, escondido sob as fortificações, Carleto recebeu a notícia de que recrutas esfomeados haviam saqueado os depósitos. Colérico, enfurecido, os oficiais trêmulos, mandou reunir todos os comandantes, e, reunidos em volta da mesa de estratégia, ordenou o ataque total à cidade. “Mas como, meu bom Marechal, como podemos atacar com tamanha desvantagem, sem a chegada de uma artilharia consistente, sem poder atravessar o fosso em segurança?”, “Como César e Alexandre jamais recuaremos” ele retrucava, “o exército está em colapso, dependemos todos do Butim”

E declarada a ordem inquestionável de avançar aos poucos homens que restavam, esses então avançaram convictos sobre as escadas quebradas nos tombadilhos, por sobre os trilhos e balsas destroçadas, pisoteando os arautos feridos, mirando o alto da muralhas altas, onde os defensores sem munição, jogavam pedras e tijolos sobre a multidão de filhos caçulas, e os tiros brancos de mármore voando nas testas desnudas desses homens de sombra e carvão choviam como as telhas jogadas sobre os cadáveres da véspera, e mesmo assim as escadas foram reerguidas sobre os muros, e então, como um milagre, os soldados começaram a escutar o canto cerrado das tribos do sertão, o canto ibérico conhecido nas aldeias maias, e os jagunços inspirados pelo coro, escalaram com ímpeto de mouro as escadas e por fim alcançaram o alto da muralha levantando em seguida o estandarte Carletista da conquista. Carleto Gaspar olhava de longe e cantava baixo e solitário sua única canção.


Esse homem que tinha a poesia como único consolo nas madrugadas insones, este ser vidente obcecado por guerras e epopéias, o tipo de jogador que quer sempre um pouco mais, viciado de veia em civilizações peninsulares, colecionador de Rios e arbustos pragmáticos, vendido para os modernos pelos povos monumentais da Antigüidade.

Esse homem que estudara com seus mestres da Germânia sobre os castelos nórdicos erguidos sobre o Cairo, sobre a logística das festas de Manhattan dos anos quarenta ou da Bagdá dos setecentos; investigara com os sábios da anatólia o amor desgraçado na melancolia medieval italiana, experimentara em árabe arcaico o cheiro doce da virilha virgem da filha do sultão, as imperatrizes núbias sussurrando seu nome de batismo; conhecera as matemáticas, as lógicas da pólvoras, os segredos da astronomia etrusca, como um Édipo, desvendara já os enigmas por antecipação, cantara por seus heróis mortos no cárcere, vivera em corpo e espírito o excesso nas drogas mais puras, e dizem alguns, viveu até o suicídio.




(* Carleitização do Canto Báltico)

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Safo (séc. VII a. C.)


"Alguns dizem que o que há de mais belo na terra é um esquadrão de cavalaria;
outros, um exército de guerreiros apeados; outros ainda, uma esquadra de navios;
mas o mais belo é o ser amado por quem o coração suspira."


sábado, 13 de outubro de 2007

Tapeçaria das paisagens


Fui outrora um califa em Samarra

casualmente num sonho destacado

como artífice dos povos e misérias

ministro-chefe dos portos e arados

Ergui bebedeiras às margens do mar Cáspio

para manter em fevereiro a Belém alvoroçada

no alto do campanário eu mirava a retomada

das ruas estreitas entre a cidade de damasco

Ao longe um viking em seu Drakkar sobre os recifes

nas masmorras torturando o Parmênides de Eléia

e ele gritando que o mundo é assim, uma odisséia

e Empédocles de Agrigento dizendo que não era

Eu sou fui e serei sempre esse mar de ondas agitadas

ancestral das planícies como os graves precipícios

iluminado desassossego da ilustração contente

onde fui encontrar as minhas horas mais felizes

Ninguém é eu, ninguém é você

não posso ser ele, ele ser eu

isso na infância é como ser você

a longa espera de José no poço

.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Amante de panos e libélulas

.
No tempo em que os relevos eram outros

Comprava-se livros como sedes de dilúvio


No tempo em que cafés traçavam teoremas

Comprava-se livros como carrosséis de antigos bailes


No tempo em que éramos soterrada aurora em braile

Almoçávamos enciclopédias nuas nos solstícios


Evidenciar mamutes já não era um vício

E lanchávamos florestas nos ensaios


sábado, 6 de outubro de 2007

Ao largo

.

Cuidado com o outro.

Amanhã serás tu a saber

e conhecer gritar e urrar


o imperativo mistério de estar

só o tempo algoz ainda

e saber soprando que a prece


é fundamental poesia de ouvir e calar

que a voz é o que falas se

talvez sem soprar soubesses


que centros são sinas de poucos

que tarde a lua não é de

manhã, se queres partir e deitar


não falhes que há sonhos

intransponíveis muradas

que consomem santos e


filhos sem dó e os mais velhos,

se queres portar a bandeira

lembra dizendo que tudo isso


e as coisas que a gente constrói

são como alegria dos seres e casas

como par de janelas abertas aos montes


por isso amigos jovens

e senhoras guardem

Guardem sempre.


Por isso adultos

meninas e tropeiros

cuidado uns com os outros


Cuidado que o outros

também és tu.

Cuidado que é


frágil o divino monopólio

que temos que cuidar

e que há de tudo em todo lugar


mas guarda assim

com carinho e prezando

prezando como quem


guarda um tesouro

e por isso talvez não percebam

que guarda,


acende por vezes aquele

que ingênuo se sente apagado

levanta o ombro caído que


não engana um pouco a vergonha

sela sempre sabendo

que se apertar não desgruda,


reza também por aqueles

no seu canto quietinho

e talvez quem sabe um dia


por uma alameda do zoológico

tu encontres também acolhido

qualquer ressuscitado ou


homem de engenho,

ademais não existe solo

até que existam os pais


Ontem soubesses talvez

que Frank, Chaplin & Tom não eram

mais que os dirigíveis transoceânicos


que intensos apenas abraçavam

baías planeta afora na virada

da centena antiga do oitocentos


.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Vai Carlos, ser gauche na vida


i

Losk, por que agora estás onde não queres?

Por que não arruma as coisas

E vai-te embora?


Que fará você com toda essa tristeza?

Que fará o dia em que ela não mais se for ?


Por que trazes aqui o que te deixas tão abatido?

Por que não gritas que não queres mais?


Losk, por que te calas menino?

Sinto tantas saudades tuas

Por que foges de ti?


ii


Por que esse sono eterno, esse cansaço, essa exaustão sem fim?

Por que esse desânimo com o porvir, esse ócio sem resultados, essa preguiça maciça?

Por que esse sono que não é vontade de se deitar, esse cansativo assombro do destino que chega?


Por que?


Resta dormir, sonhar e esquecer

E quem sabe, acordar em outro tempo

talvez em outro lugar




quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Dentro da Canção Eslava

...


os estrangeiros teriam mantido silêncio durante toda a conversa.
Falava-se de uma história de três caçadores de sonhos, que haviam
se perdido entre o sono e a vigília. Na verdade, todos os três
se encontravam em um sonho espaçoso,onde pisavam na areia
e sentiam frio sem abrigo da chuva e do vento. Cães selvagens
latiam a espreita e Mustafah calava tranquilo, sabendo que os
cães sérvios mordem antes de ladrar.
Esperavam ansiosos o amanhecer, quando poderiam apanhar
o próximo sonhador e fugir das margens gélidas e imaginárias
do Volga


...

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Breve devaneio


Hierarquia para os pratos copos panos e talheres

Casas músicas artes paisagens climas e mulheres

belezas autores mortes putas generais filosofias


Para os metais as formas os líquidos as zonas, hierarquias

materiais ingredientes sentimentos de países de loucuras

De mães de fés de pós de ervas de cataratas de culturas


Hierarquias de cidades sabores de segredos crimes e gozadas

De beijos e bucetas de falos violências de peixes de estradas


Hierarquias, onde me encontro?

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Sobre o meu caminho

.

i

eu nasci lá
não escolhi o lugar

acorrentaram-me ainda criança
e depois lançaram-me no mundo com as correntes

eu nasci lá
não escolhi o lugar
como canção que toca nas docas


ii

voei atrás dos versos por entre estrelas e tropas de linha
procurei nas casas sem dono ou guarnição
investiguei canhoneiras lâminas e esfinges
nas praças murchas entulhadas de vento e solidão
busquei nas nuvens cinzas e grosseiras
nas casas de formigas rudes
nas valas das cidades-macieiras
nas gaiolas dos bazares sujos

eternamente buscando

.



Meu riso
aprendeu sozinho
seu significado

(saber dizer minha alma)


14.02.05

domingo, 16 de setembro de 2007

Sob o Café de Portinari


A terra e o pó sepultaram a manhã que inventei

apagaram e deixaram erma de sentido

os tocos calcinados cantaram como espíritos de horror

e seu coro aspirava a inundação seca pela boca


tudo nesses homens brônzeos está oculto pelas sacas

resplandece tão somente uma aura de incêndio

uma garantia de velhice reservada para a vida toda

um áspero santuário do trabalho sobre as costas


o feitor de gola rubra e flamejante língua, ele próprio cativo,

cruel com a moça dos pés inchados que sofre sobressaltada,

atravessa de olhos baixos a fúnebre dança das cicatrizes


Estilhaços de sangue como pétalas de trêmulas vidraças

Arrancados do espaço como signos na tela do pintor

ó escuro, tumultuado escuro dos céus, nos responda:


a que deus podemos aspirar?



sexta-feira, 14 de setembro de 2007

só pensando


(Mesmo onde os homens estão presos;
e a vida é feita de intrusos

mesmo se não há sorrisos nas crianças
nem amor nas mulheres

mesmo se não outro mundo
se é tudo essa dureza e doutrina

mesmo esse rude apetite
de coisa eterna que assombra

mesmo se for tudo vulto encolhido
golpe de vento e neblina

o choro de amor segue preso nas celas)


terça-feira, 11 de setembro de 2007

Datura Inoxia

[


se hoje, o que acontece é tarde
sabemos ser o que só hoje podemos
e o sinal é ali estar o que se vê

paro sob o voo e assim ser
também o que não somos
só o caso assim de acontecer

morar, como quem vive só
e ainda saber ter também
o sol sob o assoalho

e, bom, pude estar talvez
mais disposto, mas são ases
de estar assim tão perto
e não...

sabe, é só vendo que se apreende
se no quarto estou, solto em vigília
vale dormir jamais, pra ver se entende
e não...


]

domingo, 9 de setembro de 2007

Linda cidade, Montpellier! Cidade das Belas mulheres!

a sua vida pacata, seus subúrbios, sua gare
Montpellier, meu coração,
em cada canto de minh'alma uma lembrança tua

ah se fossem casuais todos os encontros
se aquelas praças, ruas estreitas, se tudo aquilo existisse
se nós ao menos tivéssemos feito aquele show de jazz que tanto ensaiamos...

alívio eu sentiria se caisse na ilusão de que um dia vou reencontrá-los
que um dia viveremos tudo juntos de novo
que um dia terei o mesmo quarto de hotel reservado...

me levanto da cama absolutamento doido:
a angústia das horas e lembranças
os pensamentos, casos, vésperas, sonhos e obrigações

não, não pude dormir
morto de uma fome abstrata
de coisa que não se pode mastigar

ah, Montpellier, é você!!!!
eu como um pássaro pelas cidades do mundo
meu coração acolhido sob plátanos nas praças

e todos os beijos na boca que tem me dado a vida

27/09/2004


(Existe um livro de Arquitas de tarento, do qual só nos chegaram fragmentos, que trata da música antiga; seu nome é "Harmonia" e foram trazidos até nós por Porfírio e Estobeu. )

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Poesia de inverno


um binóculo mordaz para enxergar o silêncio desaprovador dos meus colegas


olivais contemplativos sob o fumo das lareiras ouvem

os choupos aposentados no pântano austero a rezar e a

noite, traçando devagar o sinal-da-cruz nestas vidraças



Sim, inverno, estamos vivos!


quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Uma carta em Homero



"Comoveu-se o esposo e disse, fazendo-lhe carinhos: ‘Anjo sem ventura, por mim não faças sofrer teu coração; ninguém me fará baixar ao Hades; homem nenhum, porém, foge à Moira, desde o dia em que nasce. Agora volta para casa, cuida de tuas coisas, da roça e do tear; vê que as fâmulas também às tarefas se apliquem. Aos homens troianos - e sobretudo a mim - incumbe-nos a guerra’.” Ilíada VI, 484-493 [trad. Haroldo de Campos]



terça-feira, 4 de setembro de 2007

Veredas


dentro de dois anos

de uma nau escura em Ipanema


a via-láctea se solta no espaço


Junto um corte de fazenda; um bom par de sapatos


guardo tesouros guardados no cerebelo


e como Alexandros sigo


a conduzir homens e carroças

pois aqui, não podemos todos ser reis



segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Sobre as línguas indo-européias


Vocábulos peregrinos caminham sob tormentas, por trás alongamentos silábicos respiram sons e cometas; consoantes da estepe e da marcha seguem a frente como arautos sem soldo, protegidos por oxímoros armados que cruzam fronteiras rosnando grunhidos de mouro; no encalço fileiras de hiatos a arrotar elipses de lua a engasgar sopros sem assentos a pronunciar como gritos de rua aaaa, até dizer-se o és! os dialetos usados adormecem vibrantes nas picadas, as vogais exaustas se recusam a seguir pro norte; os homens de ânforas vultos pelos mares, largam-se nos planos e alturas em enormes faustos a adorar o discurso eterno da seta e da tocaia; plainam surdos sob as ondas das palavras, com suas bússolas que trastejam emperradas nos cordames, suas setas viajando sem ponta ou atenção, suas palavras que não servem para dar nome às coisas...


domingo, 2 de setembro de 2007

As aventuras de Dom Enrico Torres no velho mundo



Tangerinas rolam em Knóssos

ardendo frio com os mendigos de Bruxelas

cercados por turbantes roxos no porto em Gibraltar

só não congelados porque havia haxi em Montparnasse


Tangerinas sopram em Narbonne

ao salivar kebabs de Tânger e Perpignan

esperando fiança numa saleta em Carcassone

estamos presos num hotel cristão em Amsterdam


Tangerinas crescem por Atenas

nós brigando por Lisboa nas ladeiras

sondando dealers nas esquinas pelo Thames


tangerinas voam em Montpellier

éramos família na Piazza de Espagna

ouvindo o caetano mais puro nas areias do Sahara



segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Uma Canção



dentro da tarde há um céu
debaixo dos troncos e só

dentro do homem a tarde
casados dilúvios e nós

dentro da tarde um menino
vestindo uma espécie de rei

dentro do rei um fascínio
cantando a canção que guardei


terça-feira, 21 de agosto de 2007

Sobre o caiçara


O mar entre dois versos


se alarga e transborda os versos

os versos a soluçar se exilam;


O caiçara sem versos para viver

abandona a estrofe


e tudo vira mar


Uma ideologia


Só os excessos conduzem a sabedoria


Viver é morrer nas selvas do Cambodja

ou aos pés dos muros de Jerusalém


Todo o resto é mistério




segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Fragmentos Carletistas V


...Em homenagem ao visitante cantaram uma canção de final de tarde outra de quando o rio chega no mar e por fim uma sobre a primavera no São Francisco, quando a canção terminou selaram os cavalos e foram caçar raposas...


Fragmentos Carletistas IV


...

i

O combate já durava dias e Pinheiro se recusava a recuar de suas posições na margem norte do Rio Pardo.

Suas baixas já antigiam milhares e os reforços de Porquinho tardavam em chegar; Carleto jazia com febre nas ruínas de um hotel em Prado e a nova infantaria do Coronel Franklin avançava com seus carros de combate indiferentes ao fogo dos morteiros e canhões Carletistas.

Pinheiro resolveu recuar quando a névoa prevaleceu na escuridão do inverno baiano; com o auxílio do Coronel Campos Bastos, levou seus homens em balsas improvisadas até a margem oposta.

O contingente, no entanto, estava muito enfraquecido para deter o avanço de Franklin. Haviam poucos soldados sobreviventes da 5ª Infantaria Carletista; da 4ª Divisão Blindada de Belmonte e da 9ª Artilharia de Porto Seguro...


ii

Os campos Bastos eram charcos ao sul de Canavieiras

Chovia muito aquela madrugada e mesmo assim Pinheiro ordenou que seus homens avançassem através das planícies que cercavam a margem do rio. Sob uma chuva de balas e artefatos eles atravessaram o longo espaço que os separavam das últimas fortificações carletistas e ao anoitecer já se encontravam protegidos.

Carleto Gaspar alcançara seus homens em recuo pela manhã, e, enfurecido com a retirada, decidira lançar um contra-ataque imediato para reconquistar Canavieiras

Obedecendo as indicações de Carleto, a infantaria avançou até uma pequena depressão que margeava os charcos e do horizonte mudo surgiu o grito absurdo que antecede o fragor das batalhas.

Amanhecia e um sussurro surdo ecoava do lado de fora dos muros. Os soldados que permaneciam deitados no hospital da campanha, impossibilitados pelos ferimentos de levantar-se, acompanhavam com tremor os estouros e estalos e quebrantos que escutavam a distância.

“Chove fogo, gritos e sangue” gritou um deles com o evangelho nas mãos "Nínive sucumbirá sob seus próprios males" repetiu profético o aleijado. No campo, sob os olhos fatigados de um comandante desacreditado, o exército desmantelado penava uma fuga incerta; às pressas, tudo quebrado, os oficiais corriam e fugiam rio acima com botes já preparados e no meio da carnificina os homens pensavam que aquilo tudo era pior do que quando era normal a vida.

Quando a derrota já se mostrava definitiva, Carleto recuou em segurança sob a guarda de Pinheiro e por uma trilha discreta atingiu seu quartel-general em Belmonte logo ao entardecer. A noite, mesmo cansado, não conseguiu dormir, contava de um a cem e dobrava o dedo mindinho; contava de cem a duzentos e dobrava o seu vizinho; assim por diante, até completar mil e ter as duas mãos fechadas. Lá de cima escutava os tiros distantes e as descargas de artilharia e então começava a contar novamente...


Marechal Carleto Gaspar 1841

Marechal Carleto Gaspar 1841