segunda-feira, 11 de junho de 2007

- O Deus dos Muros -

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Mathias, mais célebre caçador das montanhas de Creta, Deus do Sal e dos Sitiados, chegara ao paraíso Cristão montado num Rinoceronte, carregando em correntes de prata o Demônio dos Sonhos Obscuros .

Filho do Sono e da Mentira sofria de uma febre crônica e fora raptado pelo pai durante o parto. Viveu até os trinta anos escondido sob um tronco de amendoeira, preso numa gaiola na foz do Rio Oronte e nunca mais encontrou a mãe. Não conhecia uma única palavra do dialeto Sumério, mas falava corretamente com o guardião da jaula, que lhe trazia diariamente uma farinha de besouros moídos.

Na maré cheia, suspenso sob a árvore, somente sua cabeça emergia das vagas, mas na maré baixa podia apanhar com a mão um siri ou uma tartaruga, pois o mar retirava-se para deixar lugar o rio, e ele podia lavar a água salgada com doce. Escrevia com os dentes, que cravava na carapaça do caranguejo ou da tartaruga, mas não podia ler o que tinha escrito, e soltava os animais na água sem conhecer o sentido das mensagens que escrevia ao mundo.

Nessa idade seu corpo cresceu e a árvore, cansada do esforço de sustentá-lo, tombou sob a correnteza e deixou que ele saísse. Tinha cabelos longos e encaracolados e uma barba negra enraizada ao chão de tal maneira que ele levou anos pra se libertar. Questionado no primeiro vilarejo que encontrou sobre sua procedência, falou num acádio antigo e hesitante, e ao pronunciar umas poucas palavras da língua nova foi reconhecido como Homem Santo. Primeiro cortavam seu cabelo e vendiam na feira pra curar os rins e a bexiga, depois com o toque da alvorada, vendiam ingressos e faziam fortuna para apresentar “O Grande Sábio do Oriente”.

Amigo e amante da morte, Mathias comia carne crua, dormia com um olho aberto e um entreaberto e os cães sempre ladravam por onde passava. Senhor das mais belas jovens de Samarcanda, enquanto dormia exercitava-se com a espada e quando desperto tomava nota de todos os seus sonhos detalhadamente.

Nos dias de chuva acendia o seu cachimbo de ópio para esquentar o peito e abaixar a febre devagar. Era o único momento em que largava a caixa encantada onde escondia os sonhos aprisionados por seus ancestrais através dos tempos. Vendia alguns deles para mercadores Persas e Fenícios, enquanto estudava o alfabeto celeste para descobrir como aprisionar o Demônio dos Pesadelos.


Conhecera o anjo judeu nos bosques da Etiópia, numa tarde em que caçava escravos negros para os palácios da Babilônia. Surpreendido pela proteção divina dos nativos, Mathias foi esmagado pelo peso intransferível de seus pecados e enviado para os portões do Inferno Judaico. Lá de joelhos implorou misericórdia mas foi jogado em pele sobre o ferro em brasa; em carne viva chorou e fez juras impossíveis mas foi açoitado por um demônio pré-histórico, e quando estava já a beira do abismo incandescente de onde não há nenhum retorno, pediu uma derradeira chance e o mesmo anjo Etíope do Bosque desceu das alturas frias e pronunciou: “Glorifica-te pela Música dos Sonhos. Traga à meu reino o Demônio dos Negros Pesadelos e terás tudo que imaginas!!!”


Acordou deitado sobre uma fonte de mármore ao som da Lira de seu pai.

Sobre um pequeno pedestal entre os dois havia uma caixa de madeira com entalhes em marfim. “Mathias, isso agora lhe pertence! Aqui estão guardados os sonhos ancestrais de nossa linhagem. Leva contigo onde quer que você vá. Essa caixa é a minha única herança, além da febre!”. Pronunciou essas palavras, adormeceu e o herdeiro se quedou paralisado, olhando desconfiado aquela pequena caixa que encerrava em si todo o esquecimento das noites humanas.


Vagando solitário através dos precipícios da Anatólia, encontrou um camponês com uma vaca amarela que em troca de umas poucas moedas de cobre lhe vendeu o animal. Mathias montado em suas costas seguiu a estrada e tocou até as margens do Bósforo. Do ponto de onde se pode ver a Europa, a vaca transformou-se numa deusa lindíssima, e sem se identificar, concedeu a ele o dom da música e do caminhar sobre as águas. Também lhe entregou um alaúde branco feito com o casco de uma tartaruga antiga que conhecera Alexandre no túmulo de Aquiles. Foram seguindo a estrada tocando alaúde e errando pelas terras ao sul da Macedônia. Ele e a Deusa.

Certa vez, quando cruzavam um pântano na Beócia, à procura de sonhos enterrados, Mathias fora atacado por um javali selvagem, e só conseguiu se defender, graças a seu alaúde, que rasgou a barriga do bicho e o afugentou. Quando o bicho sumiu ferido na mata, a Deusa sem nome chorou um grito de agonia e desapareceu na Terra como pó.



Morreu numa quinta feira executado, após sobreviver à batalha de Maratona e ser considerado desertor. Enterrado junto a seu cavalo, descansou três noites e partiu numa balsa para as águas do Ocidente. Foi viver entre os Godos e Germanos, passando anos desaparecido, a saquear e incendiar cidades. Séculos depois em Constantinopla encontrou a Morte outra vez e teve que mudar seu nome para despistá-la. Deus do Sal e dos sitiados, morria todas as décadas nos campos da Rússia e da Itália e vivo ou morto sempre foi e será o Deus dos que defendem muralhas.

Depois de sua segunda morte, Mathias se refugiou no Mosteiro do Monte Sinai, onde podia roubar sonhos, galinhas e um leite quente pra baixar a febre. Em sua caixa já havia sonhos de Tróia, Micenas, Roma, Cartago e o mais valioso de todos, um sonho babilônico, herdado de antigos ancestrais, que misturava viagens à África, vestidos azuis, jóias assírias, escadarias verticais e um caminho que era sempre interrompido na oceano.

“Morrer de excessos sob os muros de Constantinopla”, esse era o destino e a profecia revelada ao homem santo por um de seus sonhos. Mesmo ciente do oráculo seguiu outra vez para Bizâncio perto do natal.

Dirigiu-se à Basílica de Santa Sofia e assim que cruzou o imenso portal bizantino escutou uma suave canção do alto da torre e quanto mais adentrava o edifício mais se sentia atraído pela música. Foi pelas escadas subindo até que a escuridão ficou tão espessa que ali descobriu seu dom e começou uma nova vida.

Na escuridão da torre conheceu Rute, a moça que talhava instrumentos de acordo com uma técnica utilizada há milênios e atualmente esquecida. Assistia compenetrado aquele trabalho no escuro enquanto ela assobiava uma canção mais rápida que o pensamento e com o passar do tempo a canção se revestiu de encanto e Mathias entendeu o segredo do alfabeto celeste: Música Divina.

No ano seguinte reuniu alguns flautistas e cantores e com estes ensinou toda a população a cantar as canções da fazedora de instrumentos. Nas praças públicas ensinou as crianças o canto que espantava os pesadelos e descobriu com seu pai adormecido, a localização da toca onde a fera dos sonhos escuros se escondia.

Já no verão seguinte, agarrado em sua espada e seu alaúde, partiu com seus músicos para as profundezas do Hades e nas margens do rio Estige, avistou flutuando sobre um barco negro, saqueado por corsários, o demônio negro dos pesadelos que dormia sobre sua barriga rasgada com uma jovem deusa cantora a lhe tratar das feridas.

Disfarçados atrás de um rochedo, Mathias e seus homens esperavam que a jovem cantora adormecesse quando ouviram a melodia celeste ressoar de seus lábios distantes. Era por essa música que a fera permanecia amansada e quieta num navio queimado, o mesmo encantamento que Mathias havia aprendido com Rute na escuridão absoluta da torre em Constantinopla.

Com o silêncio de três dias a moça se foi e a besta enfurecida acordou de seu sono forçado. Conforme o ritual aprendido, a orquestra do Sal e dos Sitiados começou o grande encantamento. Mathias domou a fera dos pesadelos com uma escala de sustenidos e por uma trilha desconhecida conduziu a besta até os muros envelhecidos e desavisados da Cidade dos Mortos.

Mathias está sentado à beira do Aqueronte e durante dias inteiros irá guardar essas trincheiras. Está enterrado na Lama e sabe que o momento chegou; avista distante um Senhor de bigode prateado e lembra do guardião da gaiola, que avançando com seus passos miúdos em direção a estrada sem volta, foi sempre um pai e companheiro na ausência do Sono e da Mentira.

Com correntes de prata, montado sobre um rinoceronte o nosso Deus levanta a mão vitorioso. Sonhando com os seios macios de uma mulher sua, acena para o sentinela que abre os portões da muralha.

Antes da batalha final, já aprisionada a besta, ele reza: “Deus livrai-me do inferno islâmico, onde ardem os cristãos, dos nove círculos do Inferno, dos calabouços do Hades. Quero rostos calmos, terra planas, cidades esplêndidas e o brilho intenso de novecentas moças virgens.” Amém.

Um comentário:

Anônimo disse...

melhor post das galáxias


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Marechal Carleto Gaspar 1841

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