terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um pouco mais sobre Carleto Gaspar*


Carleto Gaspar tinha como programa de governo algo próximo do ideal ortodoxo do Romantismo Alemão, um projeto ideológico que, para ele, só poderia ser alcançado através de um conceito particular denominado Baianismo-Beat-Dionisíaco. Se esse “método” incluía guerras, violências, saques e orgias, isso nunca foi esclarecido, Carleto só ressalta a errância como conceito fundamental de sua ideologia e ideário: a idéia do homem dividido biologicamente entre o homo sedentarius e o homo nomadis. Seu sonho era uma nação de homens nômades, assentados sobre a produtividade material do homo sedentarius limitado e pouco criativo que seria subjugado e escravizado. A luta de Classes carletista seria uma eterna luta dos sedentários infelizes e desencantados lutando para prender os nômades à sua vida medíocre e previsível.

Carleto idealizara uma sociedade em permanente migração, composta ciclicamente por levas de refugiados e assentados que se revezariam aleatoriamente da maneira que lhes parecesse mais agradável. Um nomadismo industrial com ênfase na produção idílico-poética e que reconheceria também a importância do Nômade Sedentário como peça fundamental da engrenagem social carletista, aquele nômade que decide ficar indefinidamente em um determinado assentamento.

Esses assentamentos seriam centros de lazer urbano-campestre, destinados a busca da alegria e da realização da vontade em absoluta integração com a paisagem. Segundo seu biógrafo particular, José Inácio de Abreu e Lima, Carleto Gaspar já delirava com as paisagens agrestes da Bahia no terceiro ano de guerra, dizendo que aquilo era tudo só podia ser obra de um deus da lírica persa. Parava às vezes no meio do campo de batalha para meditar sobre os binômios compostos que levam ao orgasmo ou sobre a estrutura narrativa do velho testamento. Só as tempestades de balas e flechas o tiravam de seus devaneios; mas uma vez desperto, ele outra vez surgia como um titã a esbravejar, dar tiros sem direção e a exaltar furioso o vultuoso saque que aguardava os soldados dentro dos muros. “Glória eterna ao primeiro que galgar as fortificações” e seguia em frente atirando imprudente em meio aos projéteis que zumbiam sob seus ouvidos.




Aquela noite de natal de 1807 foi uma noite triste para os poucos soldados que ainda sustentavam o cerco a Ilhéus. As malas de provisões se esvaziavam, o fosso largo impedia o assalto frontal aos muros e os carros de boi exaustos, sem ração, enfraqueciam a combalida linha de suprimentos.

Em seu gabinete improvisado com panos e lonas vermelhas, escondido sob as fortificações, Carleto recebeu a notícia de que recrutas esfomeados haviam saqueado os depósitos. Colérico, enfurecido, os oficiais trêmulos, mandou reunir todos os comandantes, e, reunidos em volta da mesa de estratégia, ordenou o ataque total à cidade. “Mas como, meu bom Marechal, como podemos atacar com tamanha desvantagem, sem a chegada de uma artilharia consistente, sem poder atravessar o fosso em segurança?”, “Como César e Alexandre jamais recuaremos” ele retrucava, “o exército está em colapso, dependemos todos do Butim”

E declarada a ordem inquestionável de avançar aos poucos homens que restavam, esses então avançaram convictos sobre as escadas quebradas nos tombadilhos, por sobre os trilhos e balsas destroçadas, pisoteando os arautos feridos, mirando o alto da muralhas altas, onde os defensores sem munição, jogavam pedras e tijolos sobre a multidão de filhos caçulas, e os tiros brancos de mármore voando nas testas desnudas desses homens de sombra e carvão choviam como as telhas jogadas sobre os cadáveres da véspera, e mesmo assim as escadas foram reerguidas sobre os muros, e então, como um milagre, os soldados começaram a escutar o canto cerrado das tribos do sertão, o canto ibérico conhecido nas aldeias maias, e os jagunços inspirados pelo coro, escalaram com ímpeto de mouro as escadas e por fim alcançaram o alto da muralha levantando em seguida o estandarte Carletista da conquista. Carleto Gaspar olhava de longe e cantava baixo e solitário sua única canção.


Esse homem que tinha a poesia como único consolo nas madrugadas insones, este ser vidente obcecado por guerras e epopéias, o tipo de jogador que quer sempre um pouco mais, viciado de veia em civilizações peninsulares, colecionador de Rios e arbustos pragmáticos, vendido para os modernos pelos povos monumentais da Antigüidade.

Esse homem que estudara com seus mestres da Germânia sobre os castelos nórdicos erguidos sobre o Cairo, sobre a logística das festas de Manhattan dos anos quarenta ou da Bagdá dos setecentos; investigara com os sábios da anatólia o amor desgraçado na melancolia medieval italiana, experimentara em árabe arcaico o cheiro doce da virilha virgem da filha do sultão, as imperatrizes núbias sussurrando seu nome de batismo; conhecera as matemáticas, as lógicas da pólvoras, os segredos da astronomia etrusca, como um Édipo, desvendara já os enigmas por antecipação, cantara por seus heróis mortos no cárcere, vivera em corpo e espírito o excesso nas drogas mais puras, e dizem alguns, viveu até o suicídio.




(* Carleitização do Canto Báltico)

Um comentário:

omnia in uno disse...

Marechal Carleto, esse homem atravessado de História, sentou praça n'algum canto recôndito da Bahia no tempo que assaltou do Marquês de Paranaguá; esse homem cuja perspicácia de um ocioso meditou sobre as distâncias plantado em sua tenda improvisada; o espírito agudo do Marechal, alimentado por coleções de enciclopédias anacrônicas, funda impérios de sonhos possíveis e circulares nas ruínas da indolência dos povos.

Marechal Carleto Gaspar 1841

Marechal Carleto Gaspar 1841