segunda-feira, 28 de abril de 2008

Excursus - Por Luiz Coelho


A Isabel Diegues

Subúrbio, umidade relativa do ar: 75%. Um micro quarto, duas mariposas em torno de um corpo rígido defunto observam o silêncio mórbido. Não se sabe como procede a respiração das mariposas. Do corpo se sabe pouco: estático e impenetrável e sem respiração. Ao largo, na janela pequena, decerto um basculante, moscas entram e saem, no que parece, à espera, na espreita. As paredes caiadas contêm narrativas de infiltrações; sob mãos de tinta. Branca a parede absorve a luz lívida que ocupa os espaços que a fresta permite. O bocal sem lâmpada pende no centro do cômodo sem dar notícias do interruptor. Da rígida respiração dos cômodos, vazada por uma colônia de cupins, e da lixeira onde duas cascas de tangerina, antigas, liberam-se os amadeirados e cítricos perfumes. Discursos subjugados por uma membrana plástica desvelam a falsa quietude do álbum de fotografias sobre a escrivaninha empoeirada. Nenhuma melancolia a ser sentida, talvez nos recados em folha amarelada nos imãs da geladeira: telefones úteis, lembretes e uma receita de suflê. Não se tem certeza se aquela atmosfera atrai abutres, posto que a podridão é um estado. Ao derredor, a dor testemunharia sozinha sem deliberação explícita. Sobre a penteadeira o espelho repete o foco das tomadas permitidas por sua posição, intermediado por uma crosta de poeira é liberado de precisão e de credibilidade. Por goteiras o ritmo das estações é marcado, suas articulações denotam mudanças bruscas de tempo. A corrupção do piso subverte qualquer possibilidade de incêndio, o que em muito é vantajoso para as formas de vida que habitam o complexo. Não falta alimento. Traças se servem de uma diversidade de sabores: almofadas e livros; compreendendo em sua refeição a celeuma cultural e o descanso de outros corpos. Sob o corpo: um tapete. Sobre o corpo: pêlos persas. Entre os pêlos e o corpo: silêncio. Levanta-se a suspeita de que o cenário em torno do corpo pode deteriorar-se, embora seja próprio à ciência identificar, ao contrário do seu senso comum, fórmulas de sobrevivência. Dessa forma, nosso comentário elíptico sobre a brevidade da vida dos insetos fica em suspenso. Os rumores não levam a lugar algum, exceto ao comum: as paredes creditam a existência de antigas narrativas e afetuosidades, neste organismo arquitetônico, fato atestado pela presença de um corpo, apesar da inexistência de folhas em branco o que obstrui qualquer liturgia.

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Marechal Carleto Gaspar 1841

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