segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O Outro Poema dos Dons - Jorge Luis Borges

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Graças quero dar ao divino labirinto dos efeitos e das causas
pela diversidade das criaturas que formam este singular universo,
pela razão, que não cessará de sonhar com um plano do labirinto,
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses,
pelo amor que nos deixa ver os outros como os vê a divindade,
pelo firme diamante e a água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Angel Silésio,
por Schopenhauer que decifrou talvez o universo,
pelo fulgor do fogo que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,
pelo acaju, o cedro e o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa que prodiga cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que, na planície, arreiam os animais e a alba,
pela manhã em Montevideu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que foram ditas num crepúsculo de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islão que abarcou mil noites e uma noite,
por aquele outro sonho do inferno, da torre do fogo que purifica e das esferas gloriosas,
por Swedenborg, que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
pelos rios secretos e imemoriais que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxões,
pelo mar que é um deserto resplandecente e uma cifra de coisas que não sabemos e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha,
pelo ouro que reluz nos versos,
pelo épico Inverno,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelo prisma de cristal e o peso de bronze,
pelas riscas do tigre,
pelas altas torres de S. Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a “Epístola Moral”e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
por Séneca e Lucano, de Córdova, que antes do espanhol escreveram toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal dos eucaliptos,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo costume, que nos repete e confirma, como um espelho,
pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins ou numa velha espada,
por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
pelo facto de que o poema é inesgotável e se confunde com a soma das criaturas e jamais chegará ao último verso e varia segundo os homens,
por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sonho,
pelo sonho e a morte, esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo.
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3 comentários:

Fulano disse...

Pelo silencioso movimento que mantem nossos dias novos
Pelos reflexo das estrelas cadentes em águas amazonicas
Pela compreensão minima dos risos apoós a curva de uma encruzilhada
Pela vontade de não pregar mais uma verdade convicente
Pela força para defendermos sem impor oque acreditamos
Pelo minimo discernimento dos sabores e das texturas
Pela simplicidade do povo do interior de goias
Pela divinidade das orquidias raras
Pelo vadios criadores de ditados populares desprendidos do tempo e de uma mera assinatura atestando a criação
Pelas cavernas de calcarias de agua azul em tom de sonho
Pelos ensinamentos relidos dos sumérios
Pelas cicatrizes herdadas por rosas arrancadas bruscamente de nossas mãos
Pelo acarajé,o tucupi e manissoba
Por muitas e interminaveis coisas que podemos agradecer e fazer a vida valer a cada dia

Miguel Del Castillo disse...

carlos meu caro, descobri seu blog por acaso nos infinitos (e labirínticos) links.

Salve mestre Borges, sempre.

abração

Cosmunicando disse...

salve, Carleto!
adorei esse poema do Borges.

Marechal Carleto Gaspar 1841

Marechal Carleto Gaspar 1841