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Encontro em mim mesmo uma espécie de abril,
a alma a temperaturas árticas, o espírito norte,
a casa onde a água cai e recai.
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A medida que conforme passa, quem mais se
destaca passando, apesar de levar tanto tempo
para ser percebido, quando se percebe...
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Sei que a verdade é difícil:
Destroços, ossos, fotos de
acontecimentos desviaram-nos dos livros: o
montanhoso rio barrancas carreando
ladrões em sangue. O segundo
andar, sempre o mais filosófico:
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− Deixe-me ver. O senhor tem algum vício?
− Amo uma mulher chamada Matilde.
− Há muito tempo?
− A vida toda.
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segunda-feira, 22 de março de 2010
Carta Armniae
sexta-feira, 19 de março de 2010
Foi mal, o Cânone
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Terras fecundas em monstros,
arquipélagos de caveiras de porcos,
praças, pipocas, câmaras de tortura:
a porta de um reino sem durar.
Depressa, levante essa torre,
os rios não vão dar com a língua nos dentes,
já é passado o tempo das tangerinas,
ovos de jacaré se acumulam na varanda,
é hoje a inauguração do pavilhão de inverno:
pesca às baleias em terras polares:
o banhista, a jovem, o jabuti.
Enxota essa imaginação:
explora o que pode ser visto.
Chega de pensar.
Diga somente a ela:
amo!
quinta-feira, 18 de março de 2010
a Abd-er-Rahman
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Exilados levam vida de pastor: a panela, o livro, o cajado, dois coelhos.
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A filha do chefe dos pastores nasceu: a insurreição, a espiga de milho, o hábito sacerdotal, o circo.
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Descobertos os estratagemas eqüestres: montanhas curvilíneas, perplexidade, um crivo de perguntas, palavras azuis e laranjas.
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(montanhas curvilíneas: tamanduás, formigas, consistência, pudins)
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Aqui pisou um pé no barro: pé na cara, chefe sentado, outra alguma coisa, povos do meio.
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(Faço pausa, que fazer?)
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Vou ver e o que vejo já havia visto
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segunda-feira, 15 de março de 2010
à garçonete etrusca
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E eis-me a tomar bebidas fortes como metal fundido
salvo das febres tropicais pelo olhar furioso
não mais um vagabundo de guerras vagas, príncipe dos jogos
não mais o falso especialista em cosmografia, químicas, mecânica
nada do homem de visão nos números, de indagação oracular
do só saber se explicar pelas palavras pagãs ou preferir calar.
Fim do arado, do queimador de pastos
do ignóbil oficial, campônio do rancho
longe demais, estou intacto:
e a gente não parte,
retoma o caminho
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009
O Outro Poema dos Dons - Jorge Luis Borges
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Graças quero dar ao divino labirinto dos efeitos e das causas
pela diversidade das criaturas que formam este singular universo,
pela razão, que não cessará de sonhar com um plano do labirinto,
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses,
pelo amor que nos deixa ver os outros como os vê a divindade,
pelo firme diamante e a água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Angel Silésio,
por Schopenhauer que decifrou talvez o universo,
pelo fulgor do fogo que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,
pelo acaju, o cedro e o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa que prodiga cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que, na planície, arreiam os animais e a alba,
pela manhã em Montevideu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que foram ditas num crepúsculo de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islão que abarcou mil noites e uma noite,
por aquele outro sonho do inferno, da torre do fogo que purifica e das esferas gloriosas,
por Swedenborg, que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
pelos rios secretos e imemoriais que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxões,
pelo mar que é um deserto resplandecente e uma cifra de coisas que não sabemos e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha,
pelo ouro que reluz nos versos,
pelo épico Inverno,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelo prisma de cristal e o peso de bronze,
pelas riscas do tigre,
pelas altas torres de S. Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a “Epístola Moral”e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
por Séneca e Lucano, de Córdova, que antes do espanhol escreveram toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal dos eucaliptos,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo costume, que nos repete e confirma, como um espelho,
pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins ou numa velha espada,
por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
pelo facto de que o poema é inesgotável e se confunde com a soma das criaturas e jamais chegará ao último verso e varia segundo os homens,
por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sonho,
pelo sonho e a morte, esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo.
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sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Modulação para teatro
Evidentemente este texto é excelente: fui eu que escrevi.
A história começa em um edifício moderno, coberto de pichações e escadas de emergência. Vivo num quarto escuro nos fundos da garagem. Tenho um duende desenhado nas costas. Meu quarto é praticamente todo ocupado por uma grande cama estilo império.
O resto do espaço é ocupado pela estante onde estão reunidas minhas cruzes, medalhas, terços, escapulários, candelabros, altares, crucifixos de porcelana e o pote de haxixe. Sei esculpir, tecer, trançar, bordar, coser, moldar, apertar, colorir, envernizar, cortar, montar e até reconstituir. Apesar de meus inumeráveis talentos, não sou um homem de negócios.
Durante anos fui contramestre na marinha mercante; trabalhava no setor de exportação de pulôveres de bolinha. Quando saíram de moda segui para o ramo do barbante: tornei-me o maior fabricante do continente. Quando o nylon surgiu no mercado, perdi a fábrica, a casa e a esposa. Me recusava a trabalhar com nylon.
Com a falência me vi obrigado a migrar para o ramo das artes e fundei um grupo especializado em cançonetas patrióticas que tiveram um êxito incontestável, mas que durou poucas semanas. Em seguida resolvi renunciar à carreira artística, mas não querendo fugir do mundo dos espetáculos, tornei-me empresário de um célebre acrobata. Percebi que começava a envelhecer quando, depois de passar uma noite fora, precisei passar dois dias em casa.
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Apologia ao saque XVII
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Cada fragmento é um comentário, é uma escolha, um recorte, uma associação, uma potência não-totalizadora.
Cada fragmento é a ruína que não se quer reconstruir para que volte a ser o que foi uma vez. A potência destes escritos talvez só possa se produzir a partir destes restos
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Ruínas não são o espaço da contemplação mórbida ou do mero inventário estéril.
Ruínas são espaços de potência, elementos de combate, focos de resistência ao domínio das limitações.
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Nascer e renascer com os mortos.
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segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Yusuf ibn Harun ar-Ramadi
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12 Galho a galho, ao banco de pedra
Aqui está uma história, e se tens uma argola de ouro na orelha, ouve bem e aproveita a ocasião. Porque aquele que conta hoje pode ainda fazê-lo amanhã, porém aquele que escuta só pode fazê-lo uma única vez, no momento em que se conta para ele a história:
Quando o ano de _____ terminava, você, Yusuf ibn Harun ar-Ramadi, tinha a mesma idade que o filósofo Fílon de Alexandria ao morrer: trinta e sete anos.
(...)
22 Atrás da Pedra
Nascido por volta de ....., Ahmad ibn Harun ar-Ramadi pertencia a uma tribo Kipchak que fugira dos mongóis para a Criméia, onde fora escravizado e vendido, com cerca de sete anos no mercado de escravos de Alepo.
Ahmad ibn Fadlān ibn al-Abbās ibn Rašīd ibn Hammād
38 Veludo, amarelo, galgadores
Os búlgaros atacaram vossos pais com lanças em riste, sem atirá-las, e com outras de suas armas favoritas: espadas e acha-d’armas. Lutavam como possessos. Rolavam os olhos, mordiam os escudos, urravam como animais e entravam na batalha sem armadura ou qualquer outro tipo de proteção.
(As) cidades do (lago) Balaton tornaram-se desertos
47 feitas como rede de peixes
Juraste pelo deus que vê com duas caras e pelos deuses da febre e do espelho
alcançar o homem que havia aprisionado (ilegível).
50 quando agora é o trigal, e um marco
Atravessas uma pastagem boa para ovelhas – embora não encontres uma gota de manteiga
Atravessas por vales férteis, por charnecas altas e avistas ao longe a divisão de batedores búlgaros. Foges precipitado.
§
Escalas uma serra de pontas afiadas e depois de caminhar dois dias sem encontrar uma gota de água , alcanças os precipícios de uma estreita garganta
64 Aqui, três formigas mataram um imenso verme
Um pouco mais de lotes, que nem nada principia ou finda, disse o presidente pelo telefone
Tirem-me de Samarcanda
Arranquem-me as carvoarias
Deixem-me surdo, as chuvas,
as tardes, as várzeas arrasadas,
(...)
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Espere.
Não deixe que
esse vai-se ver
e não vê-se sem
idade, o sol
queimando ao
redor das
olheiras,
(...)
No ensaio
de prosseguir,
prossiga.
71-q um velho com uma cesta de pedras
Quando abre o olhos vê o céu aberto e acinzentado através de uma fenda nos andares superiores.
حمد إبن فضلان إبن ألعباس إبن رشيد إبن حماد
A hera cobre pedaços de muro, das colunas, das estátuas, que ainda estão intactas; ervas silvestres invadiram o terreno por toda a parte, ocupando o espaço onde outrora estavam a horta e o jardim. Somente o lugar do cemitério permanece reconhecível, pois alguns túmulos ainda do matagal.
Ali um abade havia estabelecido residência.
Chamava-se Estesícoro, cujo pai era sabidamente Hesíodo e cuja alma era de Homero, e que escrevera, em 26 volumes, sua obra-prima O caçador de porcos do mato
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