quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Homem de Okhotsk


I
O cárcere de pedra é gélido às margens do Mar de Okhotsk. Apenas um estreito feixe de luz invade a escuridão do espaço. O homem, no canto mais seco, luta contra a umidade e a neve: com uma espécie de agulha negra entalha desenhos complexos em seu corpo. Diante da sombra, a tinta é a única forma, ele pensa, de se manter aquecido e desperto.
O homem inicia a criação de paisagens em seu corpo; sua pele é deserta e vazia, o sopro de gelo entra pelo espaço das frestas e mesmo sem um agasalho ou idéia das cores, ele começa a pintar-se pelos pés com uma seqüência de oito praias escuras que acompanham os intervalos entre os dedos e que seguem para o interior dos pés como uma vegetação de arbustos e espinhos até converterem-se em uma densa selva tropical nas coxas e virilhas. A partir da cintura, a floresta criada pela agulha em seu corpo passa por uma transição até tornar-se uma savana aberta que se espalha sobre seu abdômen até a desnivelada aridez das serras que ele entalha nas costelas.
Sobre toda a parte inferior de seu ventre ele delineia um grande e calmo mar interior abastecido pelas águas de dois rios que nascem na ponta de seus mamilos. Fontes, lagos, regatos e riachos são criados acompanhando alguns setores do sistema circulatório e o homem contorce seu corpo como um circense para poder cobrir todo o resto de seu tórax com uma vegetação agreste alternando tundras e desertos.
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II

São poucas horas sem o vento gélido no rosto; é preciso aproveitá-las para corrigir imperfeições, redefinir nuances: Nos pés, beirando as praias e baías, o homem cria uma nova cidade portuária cercada de bosques de palmeiras e bambus. Em seu rosto entalha uma espécie de taiga siberiana, onde eventualmente se destacam contornos de leopardos brancos ou ursos do Himalaia.

Nas fronteiras de seu pescoço tatua uma série de planaltos e glaciares se estendendo até as orelhas, onde ergue indistinguíveis precipícios. O frio domina todo espaço da cela e uma espécie de cerração glacial impede o homem de sentir com clareza a grande área de charcos em que se afundava seu braço esquerdo durante um breve momento de desatenção, mas é tempo suficiente para seu braço torna-se um campo fétido e infeccionado e ele então, como que para proteger-se de uma desventura térmica, se põe a drenar seus braços com diques e canais.
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III
Amanhece outra vez embora ele não perceba a pouca variação da luz no inverno ártico; o homem reúne suas tímidas forças e se força a começar um largo projeto de irrigação que planejara na véspera: acabar com os áridos contrastes de seu tronco, transformar seu abdômen e as costas em um mosaico de culturas que produzam de vinhedos, queijos, trigo e mel até laranjas, rosas e resinas. Nas nascentes de seus mamilos cava poços e minas d'água e agora manadas de cavalos e gado atravessam anualmente seu tórax para serem vendidas no sul ou nas fazendas do dorso.
Às margens do mar interior de seu abdômen costura com a agulha um próspero centro de veraneio onde espalha hotéis sofisticados, boutiques de luxo, quadras de tênis e um belo cassino de tapetes aveludados. Esculpe seu pênis como um furioso vulcão cercado por florestas de pinheiros em cujas encostas se espalham ruínas de antigos templos destruídas pelas seguidas erupções de magma branco.
Em sua nuca o homem consegue criar, mesmo absorvido pelo sismos e pelas temperaturas de Okhotsk, uma suntuosa cidade-estado de avenidas largas, plátanos em fileiras, restaurantes nas calçadas; e mesmo tendo já perdido a sensibilidade nos dedos, ele entalha com precisão na cidade, clubes de campo, escolas de música, academias de arte, bibliotecas, hipódromos e na enorme praça central de sua capital ele desenha uma suntuosa gare.
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IV
O homem sente um estranho formigamento nas extremidades na data em que começa o grande projeto da expansão corporal ferroviária. Primeiro, constrói a locomotiva que liga as vilas caiçaras na planta dos pés, atravessando as selvas, até as cidades das colinas localizadas nos joelhos; depois um custoso empreendimento conecta este primeiro ramal da estrada de ferro à tímida estação de trem situada nos ducados estabelecidos às margens das águas do umbigo.
Da capital desenhada em sua nuca projeta uma enorme ferrovia que seguindo os montes de sua espinha dorsal, atravessam seu corpo de norte a sul, passando por campos e vinhedos que se estendem pelas encostas de sua dorsal e bifurcando-se na altura do cóccix. Um dos ramais da ferrovia segue até as aldeias de pescado e estanho do pé direito e outro atravessa um enorme túnel sob o joelho esquerdo seguindo até o porto localizado no dedo maior de seu pé, onda agora já se destacavam armazéns, feiras e atracadouros.
Delineia então dois novos grandes vales, dos ombros à cintura, entre a cordilheira da espinha dorsal e as serras da costela e batiza os dois rios paralelos com os nomes de Tigre e Eufrates e então irriga suas costas e cria uma miríade de cidades-estado.
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V
Quando terminou de tatuar cada centímetro do seu corpo com precisão pensou se já não era hora de desenvolver um pouco as cidades, aumentar a produtividade nos campos e o homem resolve então diminuir a área que concede às paisagens e cria novas colônias agrícolas, assentamentos rurais, serrarias e decide furar poços de petróleo em sua virilha e promover uma plena industrialização de seu corpo. Criou então um pólo industrial em suas nádegas onde concentrou toda a indústria pesada incluindo metalurgia, petroquímica e fábricas de tratores.
Com febre e rangendo os dentes em espasmos de frio ele fura em seu corpo a luz das lâmpadas nas antigas paisagens intocadas, fábricas de curtumes, gás e tinturarias; com fortes espasmos das agulhas em fúria, entalha motores em seu ventre, fornalhas, caldeiras e guindastes, estaleiros; sobre a natureza tropical de suas pernas, ergue grandes complexos minerais de borracha e ferro e o homem triunfante em seu tremor de artista, tenta pelo menos penetrar fisicamente a indústria em seu abdômen, a agulha lhe fazendo um excesso de carícias pelo corpo, ele rasga a própria carne para sentir os perfumes do óleo e do carvão.
O homem estabelece então uma breve divisão política das partes de seu corpo e estabelece uma Monarquia Constitucionalista ao redor da grande cidade-estado na nuca, nas pernas estabelece regimes presidencialistas, nos pés crescem prósperas repúblicas mercantes, nas nádegas estabelece uma confederação de feudos estabelecidos em torno de palácios fortificados, nas costas imperadores-filósofos lambuzam-se no bálsamo dos grandes rios.

Para seguir industrializando seu corpo, o homem pensa ser necessário grandes provisões de combustíveis e matérias-primas, então cria minas de carvão e ferro nas costelas e nos cotovelos, e estabelece uma guerra entre os diferentes estados que criara em seus braços. A campanha militar é desastrosa para os habitantes do antebraço, a resistência deles, desesperada, contra os generais dos ombros usa o método da terra desolada e irresponsavelmente tudo que há no caminho entre o ombro e os pulsos do homem se queima. Sua pele é destroçada ao longo de uma retirada apressada, mas o processo de industrialização ganha impulso na região das nádegas com a crescente demanda por armamentos.
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VI
Na hora se de deitar, sua mente passeia desde as colinas e pampas dos peitos até a garganta, as praias do abdômen, os capoeirões da cintura. Ele treme como um electrocutado e conforme treme ele sangra de suas repetidas investidas nos mesmos pontos; a taiga de seu rosto sangra em cascas, os campos de sua espinha dorsal sangram em placas, suas serras na costela em hemorragia e na umidade da cela só o que ele faz é misturar o sangue à tinta e à terra e ele, trêmulo e cansado das turvas feridas de suas paisagens, resolve refazer as cidades de forma que eles voltem a parecer justas e harmônicas e não aquela sujeira de poluição e lama; para isso saneia os rios contaminados pelos metais, moderniza as docas, urbaniza os cortiços e demarca parques para proteger os poucos esboços de paisagens ainda intactos em seu corpo.
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VII
Suas mãos deveriam ter permanecido como os últimos pontos intocados de seu corpo, era somente ali que o homem sentia ainda sua própria pele como a paisagem, mas as agruras do clima levaram suas mãos ao desastre do frio e o homem para aquecê-las se pôs a pintá-las com as agulhas como se fossem verdadeiros fiordes e então, desiludido com o desenvolvimento irresponsável das paisagens em seu corpo, com a insuficiência das medidas que tomara para conter a podridão, amargurado pela dor das indústrias que misturam tinta e terra à sua carne, ele resolve por fim promover um grande dilúvio em seu corpo e assim acabar com aquela imundície. Com a agulha começa a grande inundação e as águas negras vão tomando tudo desde seus pés, subindo pelo tronco e a última sensação que tem, antes do frio apagar sua sensibilidade, é sentir uma luta feroz entre um cachalote e um marlim gigante na cavidade funda e vazia de seus olhos.

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Marechal Carleto Gaspar 1841

Marechal Carleto Gaspar 1841