quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Dentro da Canção Eslava

...


os estrangeiros teriam mantido silêncio durante toda a conversa.
Falava-se de uma história de três caçadores de sonhos, que haviam
se perdido entre o sono e a vigília. Na verdade, todos os três
se encontravam em um sonho espaçoso,onde pisavam na areia
e sentiam frio sem abrigo da chuva e do vento. Cães selvagens
latiam a espreita e Mustafah calava tranquilo, sabendo que os
cães sérvios mordem antes de ladrar.
Esperavam ansiosos o amanhecer, quando poderiam apanhar
o próximo sonhador e fugir das margens gélidas e imaginárias
do Volga


...

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Breve devaneio


Hierarquia para os pratos copos panos e talheres

Casas músicas artes paisagens climas e mulheres

belezas autores mortes putas generais filosofias


Para os metais as formas os líquidos as zonas, hierarquias

materiais ingredientes sentimentos de países de loucuras

De mães de fés de pós de ervas de cataratas de culturas


Hierarquias de cidades sabores de segredos crimes e gozadas

De beijos e bucetas de falos violências de peixes de estradas


Hierarquias, onde me encontro?

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Sobre o meu caminho

.

i

eu nasci lá
não escolhi o lugar

acorrentaram-me ainda criança
e depois lançaram-me no mundo com as correntes

eu nasci lá
não escolhi o lugar
como canção que toca nas docas


ii

voei atrás dos versos por entre estrelas e tropas de linha
procurei nas casas sem dono ou guarnição
investiguei canhoneiras lâminas e esfinges
nas praças murchas entulhadas de vento e solidão
busquei nas nuvens cinzas e grosseiras
nas casas de formigas rudes
nas valas das cidades-macieiras
nas gaiolas dos bazares sujos

eternamente buscando

.



Meu riso
aprendeu sozinho
seu significado

(saber dizer minha alma)


14.02.05

domingo, 16 de setembro de 2007

Sob o Café de Portinari


A terra e o pó sepultaram a manhã que inventei

apagaram e deixaram erma de sentido

os tocos calcinados cantaram como espíritos de horror

e seu coro aspirava a inundação seca pela boca


tudo nesses homens brônzeos está oculto pelas sacas

resplandece tão somente uma aura de incêndio

uma garantia de velhice reservada para a vida toda

um áspero santuário do trabalho sobre as costas


o feitor de gola rubra e flamejante língua, ele próprio cativo,

cruel com a moça dos pés inchados que sofre sobressaltada,

atravessa de olhos baixos a fúnebre dança das cicatrizes


Estilhaços de sangue como pétalas de trêmulas vidraças

Arrancados do espaço como signos na tela do pintor

ó escuro, tumultuado escuro dos céus, nos responda:


a que deus podemos aspirar?



sexta-feira, 14 de setembro de 2007

só pensando


(Mesmo onde os homens estão presos;
e a vida é feita de intrusos

mesmo se não há sorrisos nas crianças
nem amor nas mulheres

mesmo se não outro mundo
se é tudo essa dureza e doutrina

mesmo esse rude apetite
de coisa eterna que assombra

mesmo se for tudo vulto encolhido
golpe de vento e neblina

o choro de amor segue preso nas celas)


terça-feira, 11 de setembro de 2007

Datura Inoxia

[


se hoje, o que acontece é tarde
sabemos ser o que só hoje podemos
e o sinal é ali estar o que se vê

paro sob o voo e assim ser
também o que não somos
só o caso assim de acontecer

morar, como quem vive só
e ainda saber ter também
o sol sob o assoalho

e, bom, pude estar talvez
mais disposto, mas são ases
de estar assim tão perto
e não...

sabe, é só vendo que se apreende
se no quarto estou, solto em vigília
vale dormir jamais, pra ver se entende
e não...


]

domingo, 9 de setembro de 2007

Linda cidade, Montpellier! Cidade das Belas mulheres!

a sua vida pacata, seus subúrbios, sua gare
Montpellier, meu coração,
em cada canto de minh'alma uma lembrança tua

ah se fossem casuais todos os encontros
se aquelas praças, ruas estreitas, se tudo aquilo existisse
se nós ao menos tivéssemos feito aquele show de jazz que tanto ensaiamos...

alívio eu sentiria se caisse na ilusão de que um dia vou reencontrá-los
que um dia viveremos tudo juntos de novo
que um dia terei o mesmo quarto de hotel reservado...

me levanto da cama absolutamento doido:
a angústia das horas e lembranças
os pensamentos, casos, vésperas, sonhos e obrigações

não, não pude dormir
morto de uma fome abstrata
de coisa que não se pode mastigar

ah, Montpellier, é você!!!!
eu como um pássaro pelas cidades do mundo
meu coração acolhido sob plátanos nas praças

e todos os beijos na boca que tem me dado a vida

27/09/2004


(Existe um livro de Arquitas de tarento, do qual só nos chegaram fragmentos, que trata da música antiga; seu nome é "Harmonia" e foram trazidos até nós por Porfírio e Estobeu. )

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Poesia de inverno


um binóculo mordaz para enxergar o silêncio desaprovador dos meus colegas


olivais contemplativos sob o fumo das lareiras ouvem

os choupos aposentados no pântano austero a rezar e a

noite, traçando devagar o sinal-da-cruz nestas vidraças



Sim, inverno, estamos vivos!


quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Uma carta em Homero



"Comoveu-se o esposo e disse, fazendo-lhe carinhos: ‘Anjo sem ventura, por mim não faças sofrer teu coração; ninguém me fará baixar ao Hades; homem nenhum, porém, foge à Moira, desde o dia em que nasce. Agora volta para casa, cuida de tuas coisas, da roça e do tear; vê que as fâmulas também às tarefas se apliquem. Aos homens troianos - e sobretudo a mim - incumbe-nos a guerra’.” Ilíada VI, 484-493 [trad. Haroldo de Campos]



terça-feira, 4 de setembro de 2007

Veredas


dentro de dois anos

de uma nau escura em Ipanema


a via-láctea se solta no espaço


Junto um corte de fazenda; um bom par de sapatos


guardo tesouros guardados no cerebelo


e como Alexandros sigo


a conduzir homens e carroças

pois aqui, não podemos todos ser reis



segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Sobre as línguas indo-européias


Vocábulos peregrinos caminham sob tormentas, por trás alongamentos silábicos respiram sons e cometas; consoantes da estepe e da marcha seguem a frente como arautos sem soldo, protegidos por oxímoros armados que cruzam fronteiras rosnando grunhidos de mouro; no encalço fileiras de hiatos a arrotar elipses de lua a engasgar sopros sem assentos a pronunciar como gritos de rua aaaa, até dizer-se o és! os dialetos usados adormecem vibrantes nas picadas, as vogais exaustas se recusam a seguir pro norte; os homens de ânforas vultos pelos mares, largam-se nos planos e alturas em enormes faustos a adorar o discurso eterno da seta e da tocaia; plainam surdos sob as ondas das palavras, com suas bússolas que trastejam emperradas nos cordames, suas setas viajando sem ponta ou atenção, suas palavras que não servem para dar nome às coisas...


domingo, 2 de setembro de 2007

As aventuras de Dom Enrico Torres no velho mundo



Tangerinas rolam em Knóssos

ardendo frio com os mendigos de Bruxelas

cercados por turbantes roxos no porto em Gibraltar

só não congelados porque havia haxi em Montparnasse


Tangerinas sopram em Narbonne

ao salivar kebabs de Tânger e Perpignan

esperando fiança numa saleta em Carcassone

estamos presos num hotel cristão em Amsterdam


Tangerinas crescem por Atenas

nós brigando por Lisboa nas ladeiras

sondando dealers nas esquinas pelo Thames


tangerinas voam em Montpellier

éramos família na Piazza de Espagna

ouvindo o caetano mais puro nas areias do Sahara



Marechal Carleto Gaspar 1841

Marechal Carleto Gaspar 1841